A Lei n. 13.606, de 09 de janeiro de 2018, institui o chamado Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), que visa atingir, principalmente, os contribuintes com dívidas relativas ao chamado FUNRURAL.
Em meio à profusão de regras disciplinadoras do novo “REFIS”, uma disposição específica se fez notar. Em condição semelhante a do espectador que observa - inconformado – a presença de um jabuti na copa de uma árvore, a introdução sorrateira de um mecanismo de indisponibilidade automática de bens, aplicável exclusivamente aos créditos inscritos na dívida ativa da União, está gerando desconforto na comunidade jurídica.
O art. 20-B, inserido na Lei do CADIN Federal (Lei n. 10.522/2002), estabelece a necessidade de notificação do devedor, com débitos inscritos no CADIN, para que efetue o pagamento do débito no prazo de 5 (cinco) dias. Em caso de mora, a Fazenda Pública estaria autorizada a: I – comunicar a inscrição do débito aos órgãos de proteção ao crédito e II – averbar a “certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis”.
Visando muito mais do que a já agressiva possibilidade de “negativação” dos contribuintes nos cadastros do SPC e SERASA, a redação do art. 20-B permite outras duas conclusões:
A redação do artigo é altamente engenhosa e criativa, mas este jabuti merece uma reflexão mais profunda.
A primeira questão que se põe é: a indisponibilidade de bens não corresponde a uma garantia ou privilégio do crédito tributário? Se assim é, a introdução deste mecanismo “reptiliano” estaria impedida pelo art. 146, inciso III, “b” da Constituição Federal, que exige que a matéria tributária seja regulada por Lei Complementar.
Assim é que a decretação de indisponibilidade de bens do devedor, como medida para incentivar o adimplemento dos débitos tributários, é tratada pelo Código Tributário Nacional no art. 185-A, que, justamente, integra o capítulo de garantias e privilégios do crédito tributário.
Além disso, vê-se que o Código Tributário Nacional reconheceu a possibilidade de se adotar tal medida nos casos em que emanada de uma decisão judicial. Para o CTN, quem pode decretar a indisponibilidade de bens é um juiz. Poderia uma lei ordinária, aplicável apenas para os débitos da União, dispor de maneira diversa, e estabelecer uma indisponibilidade automática?
A questão anterior está diretamente relacionada à pergunta que segue: porque seria necessário um juiz para decretar a indisponibilidade de bens do contribuinte? A necessidade de interveniência do judiciário estaria atrelada ao respeito ao direito fundamental insculpido no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”? A resposta nos parece positiva.
O fato é que a aplicação desta controversa disposição transcende os limites do crédito tributário. A Lei do CADIN-Federal aplica-se a todos os débitos da União. A arbitrariedade desta indisponibilidade automática merece ser questionada antes que outros débitos (como multas aplicadas por Tribunais de Contas ou mesmo multas contratuais) suscitem a constrição imediata dos bens dos devedores.
Outro efeito insólito desta medida seria a reprodução desta “garantia legal” em leis tributárias estaduais e municipais. Na medida em que uma lei ordinária federal pode estabelecer um “incentivo” extrajudicial de cobrança, não poderia uma lei estadual ou municipal fazer o mesmo?
São muitos questionamentos e poucas respostas. Contudo, cabe aos contribuintes - para além de admirarem atônitos o jabuti encastelado em cima da árvore - tomar as medidas cabíveis para sua retirada. A impugnação desta medida é necessária tanto para restaurar o pouco que resta da coerência do sistema tributário nacional, quanto para garantir que a restrição ao direito de propriedade seja precedida do devido processo legal.
* Advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados
NOTAS
Dia 18 de janeiro, foi publicado na Folha de São Paulo, o artigo “O TCU e as jabuticabas transgênicas”, assinado pelo sócio do escritório e professor da USP Floriano de Azevedo Marques Neto em conjunto com o professor Sebastião Tojal. Confira a integra no link http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/01/1951294-o-tcu-e-as-jabuticabas-transgenicas.shtml