A Lei das Estatais surgiu como uma espécie de resposta moralizadora a vários desgovernos na condução de estatais brasileiras e representa, ao menos no que tange aos seus aspectos societários, um dos melhores exemplos do velho dito popular “de boas intenções, o inferno está cheio”. De um lado, a própria intenção moralizadora é prejudicada por ressalvas e exceções. Por outro, o que poderia representar um avanço em relação à necessidade de transparência e informação corre seriamente o risco de asfixiar a gestão dessas empresas.
A lei se aplica a todas as empresas públicas e sociedades de economia mista controladas por entes governamentais, com a ressalva para aplicação de artigos específicos da lei no caso daquelas empresas com receita operacional bruta inferior a R$ 90 milhões, apurados no exercício social anterior. Esta primeira ressalva já limita a um universo relativamente significativo de empresas públicas e sociedades de economia mista uma das principais inovações da lei: as regras que estipulam os requisitos e impedimentos para nomeação de administradores (diretores e membros do conselho de administração).
A lei estabelece inicialmente um requisito genérico, que é a comprovação de formação acadêmica compatível com o cargo, e outro específico, relativo à experiência profissional prévia. Este último, contudo, contempla um rol amplo de requisitos alternativos que podem ser satisfeitos pelo indicado. Desta forma uma experiência profissional de 10 (dez) anos na área tem o mesmo peso do exercício, por 4 anos, de cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 no setor público. O terceiro requisito é, na verdade, um impedimento, pois se trata de comprovar que o candidato ao cargo não se enquadra em nenhum dos requisitos de inelegibilidade previstos na Lei Complementar 64/1990.
É bem verdade, no entanto, que a lei ainda estabelece no §2º do seu art. 17 uma série de vedações para indicação aos cargos de administração das empresas estatais: (i) representante de órgão regulador ou pessoas ocupantes de cargos de chefia no Poder Executivo ou direção de partido político ou no exercício de mandato no legislativo em qualquer ente da Federação; (ii) de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral; (iii) de pessoa que exerça cargo em organização sindical; (iv) de pessoa que tenha firmado contrato ou parceria, como fornecedor ou comprador, demandante ou ofertante, de bens ou serviços de qualquer natureza, com a pessoa político-administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade em período inferior a 3 (três) anos antes da data de nomeação; (v) de pessoa que tenha ou possa ter qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade.
A Lei das Estatais prevê que a lei que autorizar a criação da respectiva empresa estatal deverá conter, como diretriz para elaboração do seu estatuto social, o prazo de gestão dos membros do Conselho de Administração e dos indicados para o cargo de diretor, que será unificado e não superior a 2 (dois) anos, sendo permitidas, no máximo, 3 (três) reconduções consecutivas. Ou seja, um administrador pode figurar como tal numa empresa estatal por no máximo 8 (oito) anos, consideradas as eventuais reconduções.
Superados os eventuais desafios da indicação, os novos administradores de todas as empresas estatais estarão sujeitos à mesma estrutura de governança, independentemente do ramo de atuação e dimensão da respectiva operação, adotando normas previstas na Lei 6.404/76 (“Lei das S.A.”) e no âmbito da CVM de escrituração e elaboração de demonstrações financeiras, inclusive a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na CVM.
É inegável que a transparência e controle são valores inestimáveis no trato da coisa pública, mas a eventual sobreposição em relação ao que já existe e o superdimensionamento das estruturas de informação e controle frente à própria estrutura de gestão e operação de determinadas empresas podem conduzir a gastos desnecessários ou pouco efetivos.
Por fim, a adoção ampla, ainda que subsidiária, do regime da Lei das S.A., com a consequente possibilidade de responsabilização dos administradores, de responsabilidade do acionista controlador e de distribuição de dividendos, pode provocar significativo aumento da litigiosidade com os acionistas minoritários. Além disso, torna mais agudo o “conflito existencial” dos administradores em uma empresa estatal: a busca do lucro e preservação dos interesses da companhia, versus o interesse dos acionistas versus sua função social.
Logo, mais do que soluções ou a proposição de um regime adequado de funcionamento, a Lei das Estatais, considerando tão somente seus aspectos societários, gerou: (i) um processo tormentoso de indicação dos seus administradores sem a garantia efetiva de moralização e profissionalização; e (ii) a previsão da criação de uma superestrutura de administração e controle, eventualmente não compatível com a dimensão da respectiva empresa estatal.
*Daniel Almeida Stein é advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques – Sociedade de Advogados
Profissionais do Manesco darão aulas no MBA “PPPs e Concessões”, uma parceria entre a LSE Enterprise, braço de educação executiva e consultoria da London School of Economics and Political Science (LSE), a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e a Rede Intergovernamental para o Desenvolvimento das Parcerias Público-Privadas (Rede PPP). O escritório estabeleceu parceria institucional com a finalidade de disseminar conteúdo e promover a formação dos profissionais que atuam na área. No âmbito dessa parceria, os advogados Tatiana Matiello Cymbalista, Marina Fontão Zago, Marina Cardoso de Freitas, Fernanda Rodrigues Esbizaro, Fernanda Meirelles Ferreira e Caio de Souza Loureiro se responsabilizarão pelo módulo jurídico básico do curso, a ser ministrado em dezembro próximo, no módulo dedicado ao Planejamento de Projetos de Infraestrutura. Para Tatiana Matiello Cymbalista, “o MBA vem em um momento propício, de potencial retomada dos projetos de infraestrutura que usem o formato de PPPs ou concessões. Todo o investimento em formação nessa área será bem-vindo, pois em contratos de longo prazo como esses, tanto acertos quanto erros podem adquirir proporções gigantescas”. (http://www.fespsp.org.br/mbappp)